Fernando Abrucio,
Valor Econômico
O pleito de outubro deveria ser centrado na discussão
da melhoria das condições locais de vida da população
As eleições municipais constituem um momento especial da
democracia brasileira porque os governos locais tornaram-se, a partir de 1988,
fundamentais para a vida dos cidadãos. As principais políticas de saúde,
educação, assistência social e transporte público passam pelos prefeitos e
vereadores, bem como as decisões sobre a organização das cidades onde moramos.
O país teria, então, de se preparar para discutir exaustivamente essas
temáticas até outubro. Só que uma parcela da classe política tem escolhido
caminhos que dificultam um debate sólido sobre que tipo de municípios queremos
ter depois de 2024.
É possível elencar quatro aspectos que dificultam colocar os
municípios e seus desafios no centro do debate das eleições de outubro. O
primeiro deles é o crescimento do peso da lógica parlamentar emendista sobre a
vida política local. Houve aqui não somente uma elevação das emendas cujo gasto
é impositivo, hoje numa faixa próxima dos R$ 50 bilhões. Também ocorreu uma
transformação na forma como podem ser transferidos os recursos, especialmente
por meio das chamadas “emendas Pix”, que caem direto no caixa das prefeituras.
Aparentemente, tudo isso é muito bom, porque mais recursos
chegam aos governos locais. Porém, esse processo é feito de um modo que cria
uma dependência dos municípios em relação aos senadores e, principalmente,
deputados federais. Muitas das mudanças feitas nos últimos 30 anos no
federalismo brasileiro foram na direção do aumento da autonomia municipal, e o
emendismo vigente é um retrocesso neste processo. Claro que parlamentares
federais (e estaduais, também cada vez mais emendistas) são eleitos tanto
quanto os prefeitos e vereadores. Contudo, deveria ser dado um poder maior a
quem apresenta um plano de governo para o conjunto da cidade e ganha a
legitimidade popular para executá-lo para o conjunto do eleitorado local.
As emendas parlamentares deveriam dialogar
com a articulação federativa das políticas públicas e com maiores prioridades
dos governos locais, se possível com metas de médio e longo prazo. Óbvio que
sempre é bom ter complementos federais para carências locais, como na área de
saúde, particularmente depois do enfraquecimento do orçamento municipal gerado
pela desastrosa ação do presidente Bolsonaro sobre o ICMS - um verdadeiro furto
federativo. Não obstante, o novo emendismo tem muito dinheiro e poderia ser
mais bem utilizado caso fosse acoplado a um projeto municipal mais amplo, discutido
nas eleições locais de 2024, com renovação do debate em 2026. Do contrário, vai
predominar uma fragmentação clientelista que, ao fim e ao cabo, enfraquece a
autonomia municipal e a capacidade de os cidadãos definirem a forma como suas
cidades devem ser governadas.
Em resumo, deveria se usar mais os gigantescos recursos
federais do orçamento das emendas para fortalecer as capacidades estatais
locais e para planejar uma visão de longo prazo, norteada por metas, para os
governos locais. Ademais, os cidadãos precisam participar mais desse processo
de distribuição de verbas federais aos municípios, e isso não pode ser feito
por fora das eleições municipais.
Um segundo aspecto que reduz a discussão essencialmente
municipal das eleições de outubro é a estratégia de realçar a polarização
nacional. Evidente que a sociedade está mais polarizada, como mostra o trabalho
de Felipe Nunes e Thomas Traumann (“Biografia do abismo”, HarperCollins).
Igualmente verdadeiro é o fato de que os dois polos mais importantes do sistema
político, o lulismo-PT e o bolsonarismo-PL, querem mostrar forças agora para
partirem de um patamar mais alto para o pleito presidencial e congressual de
2026, e por isso tentam nacionalizar agora as disputas locais.
O problema maior disso é o seguinte: quando as lideranças
políticas tentam polarizar artificialmente uma eleição cujo centro deveria ser
a discussão da melhoria das condições locais de vida da população, a democracia
perde. O pleito de outubro deveria ser para definir como organizar melhor a
estrutura urbana em termos de moradia e emprego, como preparar as
municipalidades para os desafios da mudança climática, ou ainda de que maneira
aperfeiçoar os sistemas de educação e saúde municipais, de preferência em
parceria com outros governos locais e/ou com o governo estadual e o federal.
Não nego a legitimidade democrática de os candidatos
apontarem seus opositores como bolsonaristas ou petistas e tentarem mostrar o
lado negativo desses polos. Mas, francamente, transformar a disputa eleitoral local
numa reprodução da polaridade nacional é reduzir a capacidade de os cidadãos
conseguirem opinar sobre como os prefeitos, efetivamente, podem governar
melhor.
A polarização realça, sobretudo, o embate no reino dos
valores. Escolhas normativas são centrais numa sociedade, de modo que pode ser
importante saber de que lado estará cada candidato a prefeito em relação à
democracia e à condenação dos que tentaram recentemente dar um golpe de Estado
em 8 de janeiro de 2023. Entretanto, o debate político local não pode se
circunscrever a esse tópico. Para além da polarização (e não aquém), tem muita
coisa bem mais relevante para definir sobre o caminho que vereadores e prefeitos
deverão adotar nos próximos anos.
Um último comentário sobre a tentativa de impor uma
polarização forçada nas eleições municipais. Se o mote que alimenta mais o jogo
polarizador, tal como inventado por Steve Bannon, o “Rasputin” da extrema
direita, é a guerra cultural, os “partidos do sistema”, como o são aqueles que
de centro-direita e centro-esquerda que governaram o país por quase três
décadas, têm pouco a ganhar com esse modelo. Lideranças políticas desse grupo
dependem muito mais de políticas públicas e seus resultados para terem sucesso.
Muito mais ainda num pleito municipal. Embarcando numa discussão dominada pelo
viés polarizador, o debate eleitoral municipal favorece a lógica antissistema e
não a discussão sobre o desempenho de instituições, como as prefeituras e
câmaras de vereadores.
Há um terceiro aspecto que também atrapalha uma discussão
eleitoral mais centrada nos problemas locais mais relevantes. Parte das
lideranças municipalistas tem atuado para conseguir um pouco mais de recursos aos
municípios sem pensar numa transformação mais profunda da governança local. A
discussão da desoneração previdenciária de parcela das municipalidades é um
típico caso desse modelo. Além de ter ampliado essa possibilidade para um
número muito grande de municipalidades sem levar em conta a enorme desigualdade
territorial do país, essa legislação é apenas um esparadrapo que não atua sobre
o grande passivo previdenciário dos governos locais.
Se for para ajudar estruturalmente os municípios
brasileiros, inclusive conforme a sua desigualdade de situações, as associações
municipalistas deveriam fazer um acordo com a União para realizar uma ampla
reforma da previdência pública dos governos locais. Isso provavelmente exigirá
algum fundo federal, mas terá de ser acompanhado por mudanças legais que tornem
sustentável o modelo atuarial do funcionalismo público municipal.
Talvez isso gere alguma tensão no presente, mas, se bem
debatido nas eleições de outubro, os cidadãos têm grande possibilidade de
escolher um futuro melhor para seus filhos e netos, em vez de serem enganados
de tempos em tempos por benesses que duram apenas alguns anos sem resolver
efetivamente o problema. Esse exemplo poderia ser seguido em outros temas nos
quais os governos estaduais e o federal atuam em parceria com as
municipalidades, distribuindo recursos com um propósito mais profundo:
construir capacidades estatais locais que possam ser usadas para equacionar as
grandes questões de cada cidade do país.
Para terminar a lista de obstáculos que dificultam um bom
debate na eleição municipal, é preciso combater a onda demagógica que assola o
país, baseada na apresentação de soluções fáceis para problemas complexos. A
pauta recente da segurança pública no Congresso Nacional é o exemplo mais
perfeito desse modelo, resultado do fortalecimento da lógica antissistema,
capitaneado pelos líderes da extrema direita, mas também seguido por vários
políticos de centro-direita. Se o pleito de outubro for comandado por esse
paradigma, a governança local piorará depois de 2024. Como antídoto, será
preciso melhorar a qualidade das discussões e propostas, orientadas por
diagnósticos que lidem com problemas reais e profundos das cidades brasileiras.
Fazer uma eleição municipal baseada num debate mais
qualificado pode influenciar positivamente a campanha de 2026. Afinal, o
processo de participação e escolha dos cidadãos envolve um possível aprendizado
com o jogo democrático. Mas isso só vai acontecer se dermos o devido valor e
substância à agenda local, tocando nos temas mais espinhosos, como a
desigualdade territorial, a agenda climática que cabe às cidades, a mobilidade
urbana e a melhoria dos serviços públicos. Isso exige uma discussão sem
demagogias e ilusionismos, com líderes políticos que apostem na reflexão e
autonomia dos cidadãos como citadinos.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e
professor da Fundação Getulio Vargas.