sexta-feira, 26 de abril de 2024

ÉRAMOS FELIZES E NÃO SABÍAMOS

José de Souza Martins, Valor Econômico

Antes das redes sociais, nossa consciência das necessidades da vida tinha outros valores de referência, que eram valores sociais próprios da condição humana

Na entrega do anteprojeto do novo Código Civil ao Congresso Nacional, o ministro Alexandre de Moraes referiu-se a variadas transformações ocorridas na sociedade brasileira, novos tipos de contratualidade social, que o tornam necessário. Ressaltou “a questão de costumes, novas relações familiares, novas modalidades de se tratar das questões do direito de família e sucessões, a tecnologia, a inteligência artificial, novas formas de responsabilidade civil”.

Ele poderia ter arrolado muitas outras modalidades de relacionamento que expressam a realidade atualizada do país e sofreram câmbios significativos. Aos olhos dos mais antigos, bloqueados no meio do caminho das mudanças, a sociedade está tomada por crescentes anomalias, até mesmo inaceitáveis para muitos.

Uma ideologia repressiva e punitiva, de cada vez mais numerosas pessoas, já domina a formação de partidos e de bancadas partidárias nas casas do Congresso; domina novas “religiões” e até mesmo disfarça religiões em partidos políticos, o que viola a Constituição e as leis. Um conjunto extenso de metamorfoses sociais tornou a sociedade brasileira disfuncional e patológica.

As redes sociais tornaram-se não só poderosos instrumentos de difusão cultural e de democratização do conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, diluíram e mistificaram a consciência crítica e reveladora dessas graves anomalias e transformações. O anormal passou a fazer parte da normalidade. A anomalia passou a ser concebida como um direito em nome do direito à liberdade de opção, mesmo que antissocial. O que motivava estranheza e repulsa tornou-se ódio, base ideológica de um programa de mudança para não mudar.

Sociedades atrasadas mudam relativamente depressa por impulso de fatores invisíveis. As causas da mudança eficaz que nos move mais rapidamente nem mesmo estão aqui. E as que estão aqui só muito lentamente se transformam em motivação e fator das mudanças sociais e políticas que carecemos. Estamos sempre em atraso com nossos carecimentos.

O desenvolvimento das tecnologias das redes sociais e a rapidez de sua disseminação são acompanhados pelo dedo indicador, mas não o são pelo cérebro, pela cultura e pela consciência. Esse descompasso abriu caminho para o poder de manipulação das consciências, à qual chegam os aproveitadores dessa fragilidade muito mais depressa do que o bom senso.

A criminalidade econômica, a política e a religiosa acrescentam-se rapidamente ao elenco de criminalidades que já ameaçavam as sociedades antes das redes sociais. O crime se moderniza antes da modernização da Justiça e o elenco de criminosos se dilata.

Há também as categorias sociais que não só não mudaram como radicalizaram suas antiquadas concepções de vida e dos valores que lhes são referências. Temos saudade do que nunca fomos, queremos voltar para onde nunca estivemos.

É o caso dos militares, cuja organização é estamental, de um passado que nunca teve um lá adiante atualizado à luz das mudanças sofridas pela sociedade, como se não fizessem parte dela. São movidos por carências suas e não da sociedade.

Já na ditadura militar, mas também recentemente, no bolsonarismo, deram evidentes indicações de grande dificuldade para aceitar e reconhecer as significativas mudanças sociais e políticas que iam na direção até mesmo de uma nova concepção de democracia. Socializados para fazer a guerra contra uma sociedade de inimigos imaginários, têm agido no sentido de reduzir a sociedade brasileira aos limites de uma cultura autoritária de quartel.

Também querem a volta a um passado que não houve, os grupos que encontraram nas religiões antidemocráticas e não só fundamentalistas mais do que um refúgio contra as tentações de satanás, uma fortaleza da mentalidade de guerra que os motiva. São os de religiões antirreligiosas de enquadramento dos pobres de espírito, que nas religiões do poder se sentem seguros contra as crescentes incertezas do mundo. Insurgem-se contra a necessidade de modernização das mentalidades.

Antes das redes sociais éramos felizes não porque delas não carecíamos. Nossa consciência das necessidades da vida tinha outros valores de referência, que eram valores sociais próprios da condição humana. Havia uma consciência clara do que era ser gente e do que não o era.

Não sabíamos que éramos felizes porque nos bastava a esperança do que éramos. Hoje achamos que somos felizes com o mundo fantasioso das redes sociais, mas já não sabemos o que somos. Elas desumanizaram o nosso mundo e o liquefizeram. Usurparam-nos a consciência da esperança. Trocaram nossa consciência possível por uma consciência meramente provável, o destino de todos como um mero e cinzento talvez.

Bookmark and Share

VIVA A BENEDITA DA SILVA !

Hoje é dia de parabenizar Benedita da Silva, sinônimo de superação e persistência. Benedita Sousa da Silva Sampaio, nasceu em 26 de abril, de 1942, no Rio de Janeiro.

Ela é guerreira e sempre combateu a desigualdade racial, a violência, a injustiça social – na adolescência foi vítima de estupro – e qualquer forma de preconceito neste país.

Benedita é protagonista de uma saga de dar inveja a roteirista de cinema. Filha de lavadeira, sua família de quinze irmãos, dos quais conheceu oito. Benedita trabalhou como engraxate, camelô, doméstica e vendedora de pastel.

Viúva duas vezes, teve quatro filhos, dois morreram, um deles foi enterrado como indigente. Apesar de hoje ser o principal nome do PT no Rio de Janeiro, sabe que seu maior feito foi ter sobrevivido a um destino que tinha sinais de fracasso. Atualmente é casada com o ator Antônio Pitanga.

Fadada ao destino reservado a muitas mulheres negras e faveladas desse país, Benedita da Silva enfrentou as adversidades da vida e contornou todas como as águas de um rio diante de obstáculos.

A menina da favela, negra e pobre jamais tinha chegado perto do poder, o lugar mais próximo tinha sido a porta dos fundos do apartamento de Juscelino Kubitschek, onde entregava as roupas da família do ex-presidente, lavadas pela mãe.

Em 1982, Benedita da Silva é eleita vereadora no Rio de Janeiro e começa a trajetória singular na história da política brasileira. De lá para cá, Benedita subiu mais patamares na carreira política.

Foi deputado federal, senadora, vice-governadora, governadora, ministra da Promoção e Ação Social no governo Lula, secretária de Ação Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro no governo Sérgio Cabral e atualmente está deputada federal em seu terceiro mandato.

Bookmark and Share

PASTORA ANA PAULA VALADÃO É CONDENADA A PAGAR R$ 25 MIL POR ASSOCIAR AIDS A HOMOSSEXUALIDADE

Manoella Smith, coluna Mônica Bergamo, Folha de S.Paulo

Cantora gospel argumentou que exerceu 'direito legítimo da liberdade de expressão e religiosa'; cabe recurso

A pastora e cantora gospel Ana Paula Valadão foi condenada a pagar uma indenização de R$ 25 mil por danos morais coletivos devido a um discurso contra homossexuais e pessoas com o vírus HIV. Ela foi alvo de uma ação protocolada pela Aliança Nacional LGBTI+. Cabe recurso à decisão.

O caso ocorreu em 2016. Durante transmissão do congresso "Na Terra como no Céu" pela rede Super de Televisão, Ana Paula Valadão afirmou que ser gay "não é normal".

""Isso [a homossexualidade] não é normal. Deus criou o homem e a mulher e é assim que nós cremos", disse a pastora. "Taí a Aids para mostrar que a união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte, contamina as mulheres, enfim… Não é o ideal de Deus", disse ainda.

"Sabe qual é o sexo seguro? Que não transmite doença nenhuma? O sexo seguro se chama: aliança do casamento."

O juiz de direito Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, da 21ª Vara Cível de Brasília do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, entendeu que houve "dano moral coletivo".

"Foi revivida para toda uma parcela da população a injusta e superada pecha da culpa pelo surgimento e propagação de uma doença terrível, situação que macula interesses coletivos fundamentais", afirma o magistrado.

"A manifestação e divulgação da opinião errada atribui à população LGBTI+ uma responsabilidade inexistente, atingindo a dignidade destas pessoas de modo transindividual, justamente o que caracteriza a lesão apontada pela autora", segue a decisão.

No processo, a pastora argumentou que exerceu o direito "legítimo da liberdade de expressão e religiosa".

O magistrado, entretanto, entendeu que as falas da cantora gospel sobre pessoas com HIV "não encontra respaldo em texto bíblico ou na ciência", mas são, na verdade, "uma conclusão errada que apenas repete a ultrapassada impressão popular da década de 1980, época da descoberta da doença [Aids]."

"Há muito já se conhece a constatação científica amplamente divulgada de que a contaminação pela Aids se dá, dentre outras, pela prática de sexo sem segurança, não pela orientação de cada pessoa afetada", pontuou o juíz.

O presidente da Aliança Nacional LGBTI+, Toni Reis, celebrou a decisão. "A questão é educativa para as pessoas que proferem discurso de ódio, somos totalmente favoráveis à liberdade de expressão, desde que não fira a dignidade de ninguém", afirmou.

com BIANKA VIEIRA, KARINA MATIAS e MANOELLA SMITH

Bookmark and Share

LIBERDADE ILUSÓRIA, LIBERDADE REAL

Artigo de Fernando Gabeira

A mais recente manifestação promovida por Bolsonaro, no Rio de Janeiro, reuniu menos gente e marcou também uma inflexão tática. Em São Paulo, em fevereiro, a ênfase era evitar a prisão de Bolsonaro e lembrar os presos do 8 de Janeiro, por meio do pedido de anistia. No Rio, o tema central era liberdade de expressão e apoio internacional.

A experiência acabou mostrando que esse caminho era mais promissor por duas razões. As denúncias de censura são potencialmente capazes de impressionar estrangeiros, especialmente norte-americanos. Culturalmente abertos para a liberdade de expressão, alguns são ingênuos o bastante para achar que suas leis devem valer para todo mundo.

Um outro fator importante é a abertura das grandes plataformas para a ideia de liberdade de expressão absoluta, fator essencial para a garantia dos lucros. No momento, Elon Musk e seu X estão em choque com o governo da Austrália, em torno da divulgação das imagens de um ataque a faca numa igreja. O governo acha que a divulgação estimula o crime.

Em termos teóricos, não seria necessário discutir com Bolsonaro sobre liberdade de expressão, pois é defensor da ditadura militar, aceita a tortura como forma de luta e embarca nessa luta por oportunismo.

O problema central são as pessoas que genuinamente defendem a liberdade de expressão como um valor absoluto e não aceitam nenhum tipo de limitação.

Recentemente, no Brasil, o jornalista que divulgou os Twitter Files, Michael Shellenberger, dizia orgulhosamente que a Corte americana permitiu uma manifestação nazista num bairro judeu, em 1977.

Nem todo país do mundo faria isso e por razões bem claras. Um grande teórico da liberdade, Isaiah Berlin, diria apenas que a liberdade do lobo é a destruição do cordeiro.

Berlin fez sua célebre conferência sobre o tema em 1958. Mas, ainda assim, seus argumentos são válidos. O que decorre de suas teses é que uma sociedade pluralista pode não proteger o conjunto completo de liberdades liberais, mas pode ser mais humanamente desejável do que uma sociedade liberal na qual alguns requisitos de decência mínima são violados.

Depois da 2.ª Guerra, ficou bastante evidente e acabou se consolidando em tratados que algumas práticas são tão hostis à vida humana que sua erradicação deve ter prioridade. Escravidão, tortura e perseguição racial são alguns exemplos.

Numa sociedade pluralista vista por ele, a liberdade pode entrar em choque com a igualdade, segurança e outros valores de coesão comunitária e social. Neste caso, não se pode garantir à liberdade qualquer tipo de prioridade absoluta.

O trabalho inicial de Berlin foi definir as causas do totalitarismo como uma espécie de lição do século 20. Embora adote muitos valores iluministas, ele considera que o Iluminismo é responsável, de alguma forma, por um modo de pensar religioso que entra em choque com a realidade. O problema central, na sua opinião, é muitos acharem que os valores participam de um todo harmônico e não podem estar em contradição entre si, e, se estiverem, é porque há algo errado entre eles. É uma suposição de harmonia sem a qual seria difícil imaginar Deus, a Verdade Última. Um choque com a realidade contraditória de alguns valores.

Creio que essa visão harmônica e religiosa está na base da defesa de uma liberdade de expressão absoluta, sem a qual a realidade torna-se difícil de suportar.

Recentemente, esse debate eclodiu na Escócia em torno do Hate Crime Act (ato contra o discurso do ódio). A autora de Harry Potter, J. K. Rowling, insurgiu-se contra a lei e desafiou ser presa na terra onde o Iluminismo floresceu. Ela parece não aceitar que algumas palavras podem ajudar a matar, sobretudo jovens transgêneros. Eles são o alvo de oposição de Rowling.

Aqui, no Brasil, há dificuldade de avaliar todo o processo que levou à retirada de posts e contas na internet. Só poderei fazê-lo quando puder estudar os casos detalhadamente, inclusive com a fundamentação.

No entanto, tive a oportunidade de ver pessoas incitando os generais a aderirem a uma virada de mesa, chamando-os de covardes e melancias por obedecerem aos resultados legais das eleições. A conclamação aberta a um golpe militar pode até ser permitida nos EUA, mas deveria sê-lo no Brasil, vitimado por golpes inúmeras vezes em sua história? Os neonazistas podem ser tolerados nos EUA, mas deveriam sê-lo na Alemanha, lançada numa tragédia sem fim por essa corrente política? Mesmo nos EUA, qualquer alusão a um ato terrorista, qualquer indício de preparação de algo nesse sentido, é imediatamente reprimido.

É difícil aceitar a ideia de uma liberdade de expressão absoluta sobretudo no tempo das redes sociais. Por outro lado, a ausência de uma discussão mais clara permite à censura uma latitude que ela não pode ter.

Um debate transparente e um acordo nacional sobre o tema são mais que necessários. Uma vez que as regras fiquem absolutamente claras, tornam-se mais difíceis o abuso e o exagero.

As forças políticas, no que têm de mais equilibrado, deveriam refletir sobre isso. As plataformas estão focadas no lucro. A ausência de regras claras acabará sendo pior para todos: será possível um ataque selvagem seguido de uma repressão também selvagem.

No momento todos perdem, embora a direita trabalhe com a ilusão de que se possa vitimizar para dar a volta por cima nas inúmeras acusações que sofre.

Artigo publicado no Estadão em 26/04/2024

Bookmark and Share

quinta-feira, 25 de abril de 2024

O TANGO DE LULA E LIRA

Malu Gaspar, O Globo

Armistício demonstra que Lula e Lira não têm condições políticas de impor suas vontades

Na noite de domingo, Lula recebeu Arthur Lira para uma conversa a sós no Palácio da Alvorada. O objetivo era aparar arestas. Os dois estavam desgastados por uma semana que terminou com Lira fazendo uma lista de pedidos de CPIs pendentes e o presidente da República mobilizando aliados no Senado Federal e no Supremo Tribunal Federal (STF) para mostrar ao chefe da Câmara dos Deputados que ele já não tinha o mesmo poder de antes.

Pesava no ar um clima de incerteza sobre as pautas do governo no Congresso, especialmente os vetos do presidente da República que deveriam ter sido analisados nesta quarta-feira e da bomba fiscal, a série de projetos que aumentam gastos e podem levar ao estouro do Orçamento em 2024.

O que Lula e Lira combinaram no papo ao pé do ouvido nenhum deles revelou. Lira tentou até negar o encontro, como se ignorasse que, em Brasília, palácios não guardam segredos.

Lula, ao ser questionado, disse que não tinha obrigação de contar o que foi dito. O resultado, porém, foi inequívoco. Ambos baixaram as armas, o que só costuma acontecer quando os dois lados entendem que não têm nada a ganhar com um conflito.

Nos dias seguintes, Lira puxou o freio e enterrou o assunto das CPIs. Lula disse num café com jornalistas que “todas as coisas vão ser aprovadas e todas as coisas vão ser acordadas”. Também admitiu que sua base é minoria no Congresso.

“Não é o presidente do Senado que precisa de mim. Não é o presidente da Câmara que precisa de mim. Quem precisa deles é o presidente da República, é o Poder Executivo.”

Depois dos gestos políticos, veio o efeito concreto: foi adiada a sessão do Congresso que analisaria vetos de Lula, das restrições às saidinhas dos presos ao valor de emendas parlamentares a ser distribuídas neste ano. Como o governo certamente sairia derrotado, costurou-se um acordo para suspender a votação até que “todas as coisas” fossem acertadas.

O armistício deu ao governo certo alívio, mas não garante que seus projetos andarão mais rápido nem que contarão com mais boa vontade na Câmara. A coreografia política de Lira e Lula demonstra que nenhum deles tem condições de impor sua vontade. Mas também sugere que, a esta altura, nenhum tem por que baixar a cabeça ao outro.

Tudo indica que a relação continuará por um bom tempo aos trancos e barrancos, alternando ameaças, crises, afagos e novos armistícios, já que a eleição que pode desequilibrar o jogo — para o próximo presidente da Câmara — só acontece em fevereiro de 2025.

Depois do final de seu mandato na presidência, Lira se torna um deputado como outro qualquer, o que não ajuda o plano de disputar com chance de vitória uma das duas vagas ao Senado por Alagoas em 2026.

Considerando que o estado é comandado pelo grupo de seu arquirrival Renan Calheiros, que também disputará uma dessas vagas, com a vantagem de ter o filho no Ministério dos Transportes e uma aliança antiga com Lula, o que resta a Lira é prolongar ao máximo o próprio poder para tentar fazer um sucessor e chegar a 2026 com algum fôlego.

Pelas conversas que Lira vem mantendo com aliados bem próximos, a estratégia é continuar se fazendo útil para que o Planalto precise dele, mas sempre deixando algo pendente, para não se tornar dispensável. O governo quer derrubar os quinquênios dos juízes? Podem contar com ele, na Câmara não passa. Mas precisa conter os benefícios fiscais para o setor de eventos, segurar a liberação de emendas? Hum, ele sente muito, mas não tem como conter os deputados.

Lula não tem alternativa a não ser ir se livrando de Lira aos poucos, patrocinando novos focos de poder enquanto cuida de não criar crises insolúveis. Num dos discursos que fez nesta semana, cobrou dos ministros que se aproximem do Congresso:

“Alckmin tem que ser mais ágil. Tem que conversar mais. O Haddad, em vez de ler um livro, tem que perder algumas horas conversando no Senado e na Câmara. O Wellington [Dias, do Desenvolvimento Social] e o Rui Costa [Casa Civil] têm que passar a maior parte do tempo conversando com a bancada A, com a bancada B”.

Faltou falar que, nesse jogo, ninguém tem mais habilidade e capacidade de convencimento que ele próprio. Lula já deu várias mostras de que não é mais o mesmo dos governos anteriores. Está com menos tempo, paciência e vontade de fazer política.

Mas a realidade, teimosa, também já provou que, se ele não se envolver, a coisa não anda. É preciso dois para dançar um tango. E Lula não tem, neste momento, como pedir que dancem por ele.

Bookmark and Share

quarta-feira, 24 de abril de 2024

A VOLTA DA TUNGA DOS LIVREIROS

Elio Gaspari, Folha de S.Paulo

Reapareceu no Senado a velha ideia de tabelar os livros. Ela circula há mais de dez anos e, em 2018, esteve perto de sair, tramitando pelo escurinho de Brasília. É um caso especial de tabelamento, pois, enquanto o costume é tabelar uma mercadoria para impedir que se cobre a mais, nessa girafa pretende-se impedir que o comerciante cobre menos.

Desta vez, a tentativa de tabelamento parte do Senado. Lá, a senadora Teresa Leitão desarquivou um velho projeto propondo que, ao lançar um livro, a editora estabeleça um preço. Nos primeiros 12 meses, as livrarias não podem oferecer descontos superiores a 10%. Vai-se além: numa segunda edição, o tabelamento vigoraria por outros seis meses.

No século passado, um jovem chamado Jeff Bezos trabalhava no mercado financeiro e queria mudar de vida. Foi a uma série de palestras de editores e livreiros, surpreendeu-se com a imperfeição daquele mercado e teve uma ideia: fundou a Amazon.

Começou num galpão em Seattle vendendo livros pela internet e deu no que deu. Bezos revolucionou o mercado de livros e o próprio varejo. Entrega rápido e dá descontos. Hoje a Amazon é a maior livraria do mundo. Estima-se que tenha conquistado metade do mercado de livros no Brasil. Em seu rastro, editoras e outras empresas criaram serviços de vendas on-line. Algumas, como a rede varejista Americanas, deram com os burros n’água. Foi-se ver, e a rede havia sido saqueada.

Todo o comércio de varejo passa pela destruição criadora do capitalismo. Num primeiro momento, os supermercados tomaram uma fatia do comércio às lojinhas da rua. Depois, veio o comércio eletrônico redesenhando a venda de livros a xampus. Mas só os livreiros querem tabelar seus produtos.

Os livreiros têm uma aura apostolar. Afinal, um livro não seria um sabonete. Ilusão. Livros, sabonetes e caminhões são mercadorias. Tanto é assim que, há muitos anos, quando era mais barato imprimir um livro na China, algumas editoras passaram a rodá-los em Xangai, trazendo os volumes para o Brasil. As duas maiores redes de livrarias nacionais quebraram, muito mais por causa de suas acrobacias financeiras que pela concorrência. Quando as grandes redes afogavam as pequenas livrarias, ninguém falava em tabelamento.

Reclama-se que o freguês vai a uma livraria, consulta os volumes e, ao voltar para casa, encomenda-o eletronicamente. Os comerciantes que fazem essa reclamação fazem compras on-line e não pensam em tabelar os sanduíches. Ademais, todas as grandes editoras têm operações de venda eletrônica. Se cobram mais caro ou forçam a venda de livros físicos em detrimento dos e-books (mais baratos), o problema é delas.

O tabelamento de livros existe em outros países, como França, Alemanha e Espanha. A ideia é ruim, mas deve-se admitir que essas nações funcionam direito. Valeria a pena copiar também seus sistemas de saúde e educação públicos. Copiando só o tabelamento dos livros, o Brasil correria atrás de uma jabuticaba passada. Replica-se o que há de pior, reprimindo o que há de novo.

Bookmark and Share

MARIMBONDO DE FOGO

O político brasileiro com maior longevidade política - indiretamente ainda está na ativa - Sarney completa hoje 94 anos de vida. Ele permaneceu no poder por 64 anos. José Sarney de Araújo Costa, nascido José de Ribamar Ferreira de Araújo Costa, (em 1965 adotou o ‘Sarney’ para homenagear o pai, Sarney de Araújo Costa) nasceu em 24 de abril de 1930, em Pinheiro, Maranhão.

Sarney foi o 31º presidente do Brasil (1985-1990). Anteriormente, fora também governador do Maranhão (1966-1971) e senador pelo mesmo estado (1971-1985). Depois de deixar a presidência, foi novamente senador, em 1991 (dessa vez pelo recém criado estado do Amapá, por não ter conseguido apoio da cúpula do PMDB do Maranhão à sua candidatura),2 tendo presidido a câmara alta brasileira por três vezes.
José Sarney é o político brasileiro com mais longa carreira (59 anos) no plano nacional, superando o senador Limpo de Abreu (53 anos de carreira política e 36 como senador vitalício). Ruy Barbosa, o mais duradouro político no período republicano, foi senador por 31 anos contra os 36 de Sarney e Limpo de Abreu.
Durante sua vida pública José Sarney atuou sob quatro constituições (1946, 1967, 1969 e 1988, esta última convocada por ele, no exercício da Presidência da República) e quatro governos sob a Constituição de 1946, seis no governos militares e, depois de seu mandato presidencial, cinco sob a Constituição de 1988 — 15 governos.
Como parlamentar integrou 13 legislaturas, quatro como deputado federal e seis como senador. Era parte da oposição ao governo antes de 1964 e, a partir daí, parte das forças de apoio ao regime militar. Paradoxalmente, acabou sendo o primeiro presidente civil após o regime militar, em razão da morte de Tancredo Neves.
O blog Sou Chocolate e Não Desisto indica a leitura de dois livros sobre a paradoxal carreira política de Sarney, esse brasileiro que é um mito da política. A biografia autorizada por Sarney, escrita pela jornalista Regina Echeverria, Sarney – a biografia.
Bookmark and Share

terça-feira, 23 de abril de 2024

RELATOS DO VALE DO JAVARI

Míriam Leitão, O Globo

Novas e antigas lideranças indígenas denunciam que a região continua sendo invadida e correndo perigo

O Vale do Javari continua correndo riscos, há cada vez mais invasões e, mesmo tendo mudado o governo, os invasores continuam entrando. Esse é o recado de lideranças velhas e novas de várias etnias. Por quatro horas estive numa roda de conversa entre gerações dos povos do Vale. “Nós mesmos estamos tendo que fiscalizar nossas terras”, disse o cacique Waki Kaissuma Mayoruna. “O indígena tem que prender o caçador, a polícia disse que não é para prender, mas ela não prende”, disse com a ajuda de um tradutor. Waki Kaissuma, uma das lideranças mais fortes do Vale, mora na fronteira binacional com o Peru.

Logo que cheguei à tenda onde haveria o encontro, no meio do Acampamento Terra Livre, alguém me disse. “Um momento raro, um Korubo falando.” De recente contato, com uma parte do povo ainda em isolamento, os Korubo nunca se separam de uma enorme borduna. E é com o instrumento apoiado no chão que o líder Txitxampi Korubo fala da necessidade de proteção do seu território.

O cacique Txamã Matis falou, também em sua língua, e apontou vários outros guerreiros ao lado dele, entre eles o Korubo. Um dos seus filhos traduz. Diz que ele está falando que está velho já e que os guerreiros que ele mostrou são da equipe que está trabalhando na vigilância do território. Os Matis e Korubo já foram inimigos, agora lutam lado a lado.

As lideranças foram se sucedendo, em falas fortes e lembranças de outros tempos. O “tempo do Sydney”, referindo-se ao Sydney Possuelo, que estava no encontro, ou do tempo da demarcação. Estava lá também Walter Coutinho, o perito da demarcação, um trabalho que levou anos e terminou no governo Fernando Henrique. Começou em 1985 e empacou. Com a nova Constituição ganhou força, mas só terminou em 2001. A história era lembrada pelos indigenistas, ou pelos líderes como Ivan Arapá. Dhani Kanamari explicou a situação atual.

— Os invasores não param em toda a nossa calha do rio, como Mayoruna, Matis, Kanamari, Kulina, todos têm invasores. A Feliciana que está aqui foi atacada. Ela vinha descendo o rio e encontrou invasores levando toneladas de bichos de cascos. Eles ofereceram a ela, mas ela não aceitou e foi ameaçada com arma na cabeça e o governo brasileiro não tomou providência de nada. Os garimpos estão entrando no Jarinal ( fica no rio Jutaí, no limite sudeste da TI).

O jovem líder Tamakuni Kanamari disse que tinha algo a perguntar aos jornalistas convidados para o encontro. Sonia Bridi, Rubens Valente e eu.

— Ô imprensa explica aí, porque a gente denuncia, denuncia e o governo não faz nada. A Polícia não faz nada. Os bandidos têm fuzil, helicóptero e nós jovens, as mulheres, estamos fazendo vigilância com o quê?

Outro jovem, João Filho Kanamari conta que criaram uma associação e trabalham para implantar o manejo do pirarucu no médio rio Javari.

—Nós, indígenas, somos a verdadeira Funai. Nossos avós morreram ali, nós jovens vamos defender o território. O dinheiro não é importante para a nossa vida, mas a terra é. Queremos implantar o manejo do pirarucu para ter a nossa economia e ter uma abundância de peixe, não escassez.

Abraão Mayoruna, jovem que foi aluno de Beatriz de Almeida Matos, viúva de Bruno Pereira, falou com desenvoltura e eloquência.

— Acreditamos que a floresta é vida para a gente, saúde. A nossa geração está viva porque nossos pais lutaram, nossos avós construíram a base, mas a gente corre riscos todos os dias.

Jorge Marubo, uma liderança já mais madura, disse que os garimpeiros estão chegando e em alguns anos os povos do Vale estarão na mesma situação do povo Yanomami. Afirmou que estão com dificuldade para cobrar do atual governo porque lá estão “os nossos parentes” na Funai e no Ministério dos Povos Indígenas.

Logo em seguida falou Beatriz, que hoje exerce o cargo de diretora do departamento de povos indígenas isolados da Funai.

— Foi essa história que me levou lá, foi a luta de vocês que me colocou lá. Precisamos fortalecer a Funai.

Foi uma tarde de visita a um Brasil profundo e forte. Patricia Mayoruna é uma das quatro mulheres que fazem parte do Equipe de Vigilância da Univaja.

— Me disseram que porque eu sou mulher eu não ia conseguir fazer esse trabalho. Foi difícil, mas eu consegui.

Patricia andou 100 quilômetros, durante 60 dias para o trabalho de reavivar os marcos da demarcação da TI Vale do Javari, a segunda maior terra indígena do país.

Bookmark and Share

TESOURA VOADORA

Carlos Andreazza, O Globo

“Éramos felizes e não sabíamos” antes da existência das redes sociais. Talvez. Nada contra o saudosismo. Idealizações do passado compõem o acervo das conversas jogadas fora e não raro acomodam, diluem, nossas incompreensões (e outros impulsos do pequeno xandão havido em cada um de nós). Têm seu valor.

Era mais feliz quando o adversário não passava por mim sem que eu nem sequer visse a bola. Quem nunca contestou o passar do tempo — o drible fácil do garoto de 20 anos — com fantasias sobre a própria juventude? Tem a ver com reação. Poderia lhe aplicar uma tesoura voadora. Fazê-lo voar. Mais provável que não o acertasse; que o machucado fosse eu.

Tem a ver com controle. Com a perda de controle. Tudo bem, não sendo você juiz da Suprema Corte. Não sendo o juiz sob cujos inquéritos, onipresentes e eternos, pratica-se censura prévia. Em redes sociais.

O “éramos felizes e não sabíamos” de Alexandre de Moraes expressa autoritarismo. Um poderoso, o poderoso máximo do país, inconformado — não com a existência das redes sociais — com a impossibilidade de controlá-las. E então: tesouras voadoras.

Tem a ver com a necessidade de exercer poder, acostumado e estimulado o ministro a dominar e resolver. A seu modo. Nosso delegadão moderador abridor de picadas-precedentes.

Tem a ver com Brasília, com o que aquele universo deturpa. Com os mandatos que distribui. Ministros do Supremo podem tudo. É o que a vida na capital lhes informa, de convescote em convescote. É mais fácil controlar em Brasília. A agenda da semana passada ilustra. Tudo se acerta, república à margem.

Moraes encontrou-se com Arthur Lira, a quem já se serve café morno, e o enquadrou — sem precisar de tesoura voadora. Interlocutores da dupla venderam uma “conversa dura”. Duro é acreditar. O presidente da Câmara vinha brincando de plantar boatos sobre CPI para apurar excessos do Judiciário. Instrumentalizou a grita bolsonarista para esquentar um pouco o café. Foi decerto lembrado, jurisprudências ao vento, que o STF lhe terá o foro infinitamente e tem sido gentil. De kit de robótica não se ouviu mais falar.

O ministro também esteve no Senado. Foi lá que disparou seu “éramos felizes e não sabíamos”. É de lá que vem — plantada por Davi Alcolumbre, só menos poderoso que Moraes — a projeção de que, sendo ainda mais conservadora a Casa a partir de 2026, inevitável será um processo de impeachment contra integrante do STF.

Alcolumbre, que nunca deixou de presidir o Senado, armou seu gabinete na Comissão de Constituição e Justiça, desde onde opera milagres como o que fez, pelas verbas da Codevasf, as bacias dos rios São Francisco e Parnaíba chegarem ao Amapá. Ele vocaliza o ânimo do Congresso ante o Supremo legislador que corrige-preenche omissões do Parlamento.

Ânimos conservadores mudam, indignações arrefecem, a depender dos progressismos. Brasília se acerta. Enquanto se especula com as chances de impeachment de ministro do STF na próxima legislatura, testam-se — na mesma CCJ — os humores da sociedade ante a emenda constitucional, a PEC do Quinquênio, que turbinaria os salários de juízes.

(À parte Fux, líder sindical histórico dos togados, seria bom saber o que pensam os outros supremos a respeito dessa “mentalidade antiquíssima”, também “mercantilista”, patrimonialismo que coloniza o Brasil.)

O presidente Lula jantou com sua bancada no STF. Moraes esteve presente, onipresente. Como seus inquéritos. O estado de vigília — este 8 de Janeiro permanente — que sustenta, em proteção à democracia, transformou ministro em instituição, mesmo na personificação da Justiça; arbitrariedades, em instrumentos garantidores da saúde pátria. É possível que transforme essas minhas críticas em ataques.

A bancada do governo no Supremo, promotora do expansionismo criador do terceiro turno parlamentar, cobrando ao Planalto postura ativa em defesa de seus senadores no tribunal; Moraes tendo liderado o esforço que assegurou o mandato da democracia — logo, claro, de Lula. As coisas se confundem. Confundem-se as fronteiras, os limites, e eventos assim se tornam naturais.

Brasília se resolve. Havendo cargos e grana para as emendas de comissão, nova fachada do orçamento secreto e fundo eleitoral paralelo em ano eleitoral, resolve-se. Pacto arrecadatório para a partilha dos gastos, beleza. Todo mundo quer uma PEC do Quinquênio para si.

E Lira, café aquecido, foi ter com Rui Costa, da Casa Civil. Prometeu não se vingar do governo. Já indicara o novo chefe do Incra em Alagoas. Vida que segue. Depois de manipular o bolsonarismo como ferramenta de pressão e dar trela ao risco de “agenda-bomba”, o Lirão compõe. Brasília se acerta, havendo dinheiro. Resolve-se. Fabrique-se, conforme autoriza o natimorto (vulgo arcabouço) fiscal. Haverá.

A rapaziada é feliz e sabe.

Hoje encerro esta jornada no GLOBO. Foram quase oito anos neste lote. Prazer e honra. Fui feliz. Sou gratíssimo. Grato sobretudo aos leitores, que fizeram da coluna sucesso e referência.

Bookmark and Share

"A MULHER DEVE SUBMISSÃO AO MARIDO"

Do UOL, em São Paulo

Deputada que propôs sessão só com homens diz que é vítima de 'crentefobia'

Após propor que apenas homens participem de uma sessão solene na Assembleia Legislativa do Maranhão no Dia da Família, em 15 de maio, a deputada estadual Mical Damasceno (PSD-MA) afirmou que sofre "crentefobia".

O que aconteceu

Parlamentar disse que "a esquerda e os veículos de comunicação" trabalham para "pressionar e calar" os evangélicos. De acordo com ela, não há respeito pela visão "de mundo dos crentes". A declaração foi feita em um vídeo publicado no Instagram.

Ela destacou que, desde a proposta feita, é alvo de ataques, xingamentos e ameaças. "Até de agressão física, de pessoas que dizem defender os direitos das mulheres. Estou sofrendo ataques misóginos de quem me acusa de misoginia".

Damasceno justificou que sua intenção não era dizer que a mulher é inferior ao homem. "Em momento algum quis dizer que a mulher é inferior ao homem e nem que elas não devem ocupar cargos públicos". Para ela, a "lacrosfera" - termo utilizado pela parlamentar para se referir à mídia e à esquerda política - distorceu sua declaração. "Eu me referia a um ensinamento bíblico em que Deus designa o dever da mulher para com seu marido. Isso inclui amor, respeito, a assistência e o zelo para com seu lar", afirmou.

A deputada também criticou os veículos de comunicação que repercutiram a declaração. "O que eu percebo na esquerda e nos veículos de comunicação é uma crentefobia, em que, na verdade, querem nos pressionar e nos calar, pois não aceitam e nem respeitam a nossa visão de mundo. A visão de mundo dos crentes, das pessoas que acreditam na Bíblia, querem nos impor os novos formatos de família, mas não respeitam o nosso modelo de família tradicional instituído por Deus".

Relembre o caso

A deputada estadual propôs que apenas homens participem de uma sessão solene no Dia da Família.

Mical Damasceno defendeu ideia ao justificar que o homem é o "cabeça da família". Nós comemoramos o Dia da Família em 15 de maio. E aí, veio uma ideia em meu coração, que eu acredito que seja divina, de nós fazermos uma sessão solene aqui, mas somente com homens para mostrar a toda sociedade que o cabeça da família é o homem", declarou durante sessão plenária realizada nesta quarta-feira (17).

A parlamentar disse que gostaria de "encher' o plenário de "macho". Para ela, a mulher "deve submissão ao marido". "Doa a quem doer. Porque as feministas defendem que tenha esse direito de igualdade. Elas querem estar sempre em uma guerra contra o homem".

E a senhora [deputada Iracema Vale], como católica praticante, sabe quem é cabeça da família, é o homem, assim como Cristo é o cabeça da Igreja. Vamos encher esse plenário de homem, de macho.

Mical Damasceno

Nas redes sociais, Damasceno publicou um trecho de sua declaração e voltou a defender a ideia. "O homem é o cabeça da família", escreveu.

A deputada foi reeleita pelo PSD, nas eleições de 2022, para seu segundo mandato, obtendo 52.123 votos.

A Assembleia Legislativa do Maranhão informou que a sessão solene será aberta à participação de homens e mulheres. "Sobre o pronunciamento da deputada Mical, ocorrido nesta quarta-feira (17), de que o ato tenha apenas a presença de homens, trata-se de uma opinião da parlamentar, respeitada dentro da pluralidade que compõe o parlamento estadual, que representa todos os segmentos da sociedade maranhense, em suas diversas forças políticas e linhas ideológicas", disse o órgão em nota enviada ao UOL.

Bookmark and Share

segunda-feira, 22 de abril de 2024

A PROXIMIDADE DE UMA GUERRA ABSURDA

Artigo de Fernando Gabeira

A tensão entre Israel e Irã nos mantém alertas não apenas sobre a possibilidade de um conflito regional, mas de algo muito mais amplo, que envolva toda a humanidade.

Neste momento, considero muito interessante a reflexão do escritor Amin Maalouf no livro recém-lançado no Brasil “O labirinto dos desgarrados, o Ocidente e seus adversários” (Editora Vestígio, 332 páginas). Ele não é cientista político nem estrategista. É um escritor que não só tem coragem de afirmar o absurdo da guerra, como de devolver as qualificações de romântico ou ingênuo atribuídas aos que a consideram inevitável.

Creio que Maalouf, nascido no Líbano e vivendo na França, tem muitas razões para refletir bem sobre o Ocidente. Ele escreveu um livro sobre as Cruzadas mostrando como, nas Cruzadas, os europeus comiam crianças muçulmanas no espeto. Ele conhece também todos os horrores da colonização europeia na África, Ásia e em todos os outros lugares por onde ela se instalou. Mas seu conhecimento da História mostra também que o ódio sistemático ao Ocidente acaba desviando para a barbárie e para a autopunição.

Na comparação entre as duas guerras frias, a que terminou com o fim do Império Soviético e a atual, Maalouf compreende bem que países como Rússia e China, que, de certa forma, encarnavam a revolução no passado, representam hoje o campo do conservadorismo político, social e intelectual. Essa constatação parece não ter chegado à esquerda brasileira, mas isso é apenas um detalhe.

Uma das importantes conclusões do livro é que nem os ocidentais nem seus aliados são capazes de conduzir a humanidade para fora do labirinto em que ela se perdeu. Isso é verdade, pois nenhuma nação detém todas as virtudes e todas as respostas, muito menos o direito de dominar as outras.

Ele pensa que estaríamos realmente perdidos se acreditássemos que a humanidade precisa de uma nação hegemônica para liderá-la. Estaríamos condenados a torcer pelo que nos maltrata menos, tipo de opção que alguns países como o nosso são forçados a adotar no plano da política interna.

A estupidez de uma guerra mundial pode nos destruir. Mas é uma pena, pois temos grandes problemas comuns, como o combate à emergência climática, e grandes possibilidades de progresso por meio da evolução da medicina genética e mesmo da inteligência artificial, se conseguirmos controlar suas consequências. Apesar de parecer ingênuo, é necessário apostar na paz. Claro que, num confronto mundial, o Brasil, com suas raízes históricas e culturais, é um país do Ocidente e deve ficar ao seu lado.

Mas antes de tudo é necessário investir não só na paz regional no Oriente Médio, como em todos os lugares onde houver conflito. Os fundamentos de nossa política externa nos permitem isso. Há, porém, uma brecha entre os fundamentos e a prática, marcada até agora por frases infelizes e uma visão nostálgica da primeira Guerra Fria. A ideia de que existe democracia relativa na Venezuela ou democracia efetiva na China é apenas resultado de uma visão que não encontra nenhuma base no mundo real.

Na verdade, a democracia não é a única forma de governo. Não se pode universalizá-la com adjetivos, muito menos tentar levá-la a outros países na ponta da baioneta como os Estados Unidos fizeram em muitas ocasiões. O grande esforço intelectual do momento é dissecar todos os elementos de conflito no mundo e neutralizá-los.

Maalouf destaca um deles que contribui enormemente para envenenar o clima político. É o vínculo que estabelece entre religião e identidade, sobretudo nos países de tradição monoteísta. Os conflitos identitários que se baseiam em referências divinas acabam envenenando a História humana. Nesse ponto, há um reconhecimento da longevidade de Confúcio: para ele, o que importava era o comportamento do cidadão na cidade, e não suas preferências metafísicas.

Artigo publicado no jornal O Globo em 22/04/2024

Bookmark and Share

domingo, 21 de abril de 2024

PARABÉNS, BRASÍLIA !

Brasília completa hoje, 64 anos. Inaugurada em 21 de abril de 1960, pelo então presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, Brasília é a terceira capital do Brasil, após Salvador e Rio de Janeiro.

A transferência dos principais órgãos da administração federal para a nova capital foi progressiva, com a mudança das sedes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário federais.
O plano urbanístico da capital, conhecido como "Plano Piloto", foi elaborado pelo urbanista Lúcio Costa, que, aproveitando o relevo da região, o adequou ao projeto do lago Paranoá. O lago armazena 600 milhões de metros cúbicos de água.
Sob as linhas retas e curvas do arquiteto Oscar Niemeyer, nasce Brasília. Um grande desafio; a cidade foi construída na velocidade de um mandato, e Niemeyer teve de planejar uma série de edifícios em poucos meses para configurá-la.
O blog Sou Chocolate e Não Desisto indica dois livros biográficos sobre Juscelino Kubitschek: JK – O artista do impossível, do jornalista Cláudio Bojunga e Juscelino Kubitschek – O presidente bossa-nova, da jornalista Marleine Cohen com prefácio de Maria Adelaide Amaral.
Além dessas biografias, uma ótima opção é o filme Bela Noite Para Voar, de Zelito Viana, lançado em 2005, baseado no livro de Pedro Rogério Moreira que tem como pano de fundo duas conspirações contra o governo "50 anos em 5", de Juscelino Kubitschek.
Se preferir uma obra mais extensa, a minissérie JK, de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira com cinco discos (DVD), aproximadamente 230 minutos em 47 episódios; é uma excelente opção para quem gosta de história e política.
Bookmark and Share

RELEMBRANDO TANCREDO NEVES

Memória - Tancredo de Almeida Neves, nasceu em 4 de março de 1910, em São João Del Rei, Minas Gerais. Faleceu em 21 de abril de 1985. Tancredo era advogado, empresário e político; foi casado com Risoleta Guimarães Tolentino, com quem teve três filhos.

Em 1985 foi realizada a primeira eleição (indireta, via Colégio eleitoral) para presidente desde o golpe militar de 1964.
Tancredo Neves foi indicado por uma coligação de partidos, com apoio de Ulysses Guimarães (a figura mais importante no período de redemocratização do país).
Tendo como candidato a vice na mesma chapa José Sarney, venceu o pleito em 15 de janeiro de 1985, por 480 votos contra 180 de Paulo Maluf.
A articulação que elegeu a dupla Tancredo e Sarney é tida ainda hoje como uma das mais complexas e bem-sucedidas na história política do país.
Tancredo temia que os militares mais rigorosos se recusassem a passar o poder ao vice-presidente. Porém não resistiu, e na véspera da posse (14 de março de 1985), foi internado em Brasília com dores abdominais.
José Sarney assumiu a presidência aguardando o restabelecimento de Tancredo, que a partir de então, já em São Paulo, sofreu sete cirurgias. No entanto, em 21 de abril (mesma data da morte do mártir nacional Tiradentes), Tancredo faleceu vítima de infecção generalizada, aos 75 anos.
Vinte anos após, o corpo médico revelou que não divulgou o laudo correto da doença, que não teria sido diverticulite, porém um tumor. Embora benigno o anúncio de um tumor poderia ser interpretado como câncer, causando efeitos imprevisíveis no andamento político no momento.
Em seu lugar, assumiu a presidência da República o vice José Sarney, encerrando o período de governos militares chamado de Anos de chumbo iniciado com o Golpe de 1964.
Vale a pena ler –  O blog Sou Chocolate e Não Desisto recomenda três obras sobre a trajetória de Tancredo Neves: o livro Tancredo Neves - A travessia midiática; uma organização de textos de vários autores sobre a vida desse político feita por Nair Prata e Wanir Campelo, o documentário Tancredo – a travessia, de Silvio Tendler e a recente biografia Tancredo Neves, O Príncipe Civil, do jornalista Plínio Fraga.
Bookmark and Share

LIBERDADE, LIBERDADE

Em 21 de abril de 1792, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes era enforcado. Lutou pela Independência do Brasil. Foi traído e não traiu jamais. A Inconfidência de Minas Gerais.

Os versos do samba enredo da escola de samba Império Serrano, campeã de 1949, fez um enorme sucesso em todo o Brasil e, desde então, vem servindo para ajudar a contar um dos capítulos mais importantes da nossa história.

A Inconfidência Mineira foi um movimento político que tinha como objetivo conquistar a independência do Brasil em relação a Portugal, alimentado pelos altos impostos cobrados da mineração em Minas Gerais e também pelos ideais propostos pela Revolução Francesa.

Ao longo do tempo a execução de Tiradentes, um dos participantes desse movimento foi transformada em seu símbolo, mesmo sendo objeto de muitas controvérsias em relação ao seu papel e mesmo sobre a imagem que foi criada e divulgada para retratar os acontecimentos.

Controvérsias a parte, a possibilidade de contarmos essa história através de sambas e de feriados mostra que essa é uma história importante e consolidada na cultura brasileira.

Bookmark and Share

sábado, 20 de abril de 2024

A RETÓRICA DA REAÇÃO

Oscar Vilhena Vieira, Folha de S. Paulo

Ações afirmativas têm transformado o país, e por isso há vozes contrárias

À medida que se aproxima o prazo para a revisão da lei de cotas no serviço público ressurgem os ataques às políticas de ação afirmativa. Em "Retórica da Intransigência", com enorme perspicácia e fina ironia, o economista Albert Hirschman descreveu três tipos de argumentos comumente formulados pelo pensamento conservador contra as sucessivas ondas progressistas de expansão dos direitos.

Como é difícil negar validade a determinadas reivindicações de liberdade, igualdade e justiça, muitos dos beneficiários de privilégios e das estruturas de subordinação social empenham-se em desqualificar políticas progressistas, sob argumento de que, embora louváveis, são invariavelmente perversas, fúteis e/ou ameaçadoras de outros valores, produzindo resultados inversos aos pretendidos. Logo, melhor deixar que as mudanças sociais sigam o curso natural da história. Afinal, de boas intenções o inferno está cheio.

As ações afirmativas, especialmente as cotas raciais, seriam um exemplo típico de políticas "perversas". Formuladas para enfrentar o racismo e a desigualdade, por meio inclusão de pobres e negros nas esferas de conhecimento e poder, essas políticas tenderiam a reforçar o racismo contra os negros, na medida em que romperiam cordialidade inter-racial, podendo inclusive gerar um sentimento de inferioridade entre os negros, que passariam a se sentir incapazes de ascender socialmente sem as ações afirmativas.

Para os críticos mais moderados das ações afirmativas, que chegam a reconhecer as boas intenções dessas políticas, os esforços seriam absolutamente "inúteis", pois não afetariam as raízes do problema, que se encontra na má qualidade da educação universal básica. Políticas afirmativas consistiriam em formas ineficientes de enxugar gelo.

Há, por fim, aqueles que argumentam que as políticas de ação afirmativa constituem uma verdadeira ameaça a princípios e valores da ordem liberal democrática, como a igualdade perante a lei, a excelência e a meritocracia. A equiparação das bancas de heteroidentificação aos tribunais é a expressão mais constrangedora dessa tese. As críticas mais comuns são redução da excelência acadêmica ou da eficiência dos serviços públicos.

O fato é que as profundas e persistentes desigualdades raciais, econômicas e sociais, que se entrelaçam e se reforçam mutuamente, não foram abaladas pelas políticas chamadas universais nos primeiros cem anos de nossa República. Destaque-se que até 1990 apenas 40% da população havia concluído os primeiros quatro anos do ensino fundamental. A porcentagem de negros no ensino universitário não ultrapassava um dígito, especialmente em cursos como medicina, direito ou engenharia.

Da mesma forma, as posições de comando, nas esferas pública ou privada, foram monopolizadas por pessoas brancas. Aos negros foram destinadas as funções subordinadas e a violência, para que não tivessem dúvida sobre o seu devido lugar.

O fato é que as ações afirmativas de natureza racial têm provocado uma autêntica transformação do tecido social brasileiro, que ficou reprimida por mais de um século após a Abolição. Essas mudanças, marcadas pela chegada da população negra a espaços que antes eram reservados apenas aos brancos, como sempre lembra Cida Bento, gera muito temor entre os brancos, mas também aponta a existência de fissuras no pacto da branquitude, no dizer de Adilson Moreira.

As ações afirmativas estão mudando essa realidade de privilégios e discriminação. Seus resultados devem ser testados e seus processos corrigidos e aperfeiçoados.

Só não podemos nos deixar iludir pela retórica da reação, que se empenha em deixar tudo como está.

Bookmark and Share

sexta-feira, 19 de abril de 2024

ATACAR CRIME ORGANIZADO É ESTRATÉGICO

Fernando Abrucio*, Valor Econômico

A profissionalização e a adoção de modelos de gestão consistentes, como em boa medida ocorreu no SUS, são fundamentais para que a cooperação federativa na segurança pública não seja mero discurso

A relação do crime organizado com o Estado brasileiro se tornou um tema estratégico para o presente e o futuro do país. A prisão dos mandantes da morte de Marielle, a fuga de dois membros do Comando Vermelho de presídio federal de segurança máxima e a investigação sobre os tentáculos do PCC na administração pública em São Paulo revelam que as facções criminosas só são fortes porque seu negócio, o crime, está cada vez mais interligado com ação ou inação do aparelho estatal. Essa deveria ser a agenda prioritária da segurança pública do país, em vez de projetos aporofóbicos e sem embasamento em evidências, como a “Lei da Saidinha” e a PEC sobre as drogas.

É estarrecedor como os políticos e parcela da sociedade compraram um modelo demagógico para combater a criminalidade e a sensação crescente de insegurança. Há uma miopia enorme que gera decisões que, ao fim e ao cabo, somente vão fortalecer o crime organizado. Fim da “saidinha” e criminalização da posse e porte de drogas em qualquer quantidade terão como principal resultado o crescimento da população prisional, especialmente de pessoas pobres e negras. Isso só fortalece ainda mais as facções criminosas, que precisam de um exército de gente sem direitos nem esperança, produzindo assim uma máquina do crime cada vez mais poderosa.

O foco não deveria ser leis penais mais rígidas desenhadas para atingir basicamente os mais pobres. Da classe média para cima ninguém será preso por porte de drogas. Basta visitar as festas de jovens abastados ou da alta sociedade paulistana, carioca ou brasiliense para saber como o ilícito usado por seus participantes é invisível para as forças policiais. Assim, a descriminalização mais importante a ser discutida no país é a da pobreza.

Tampouco o endurecimento da ação policial resolverá a questão da criminalidade. A polícia paulista matou a torto e a direito a população vulnerável da Baixada Santista, e o PCC continua exportando suas drogas pelo porto de Santos. A política do “bandido bom é bandido morto” defendida pelo secretário Derrite não reduziu os crimes contra o patrimônio que ocorrem em São Paulo, que cresceram até no icônico bairro de Higienópolis. Há clamores morais em prol do punitivismo e da mão forte - muitas vezes ilegal - das polícias. Mas, ao final, produz-se incompetência em acabar com as raízes da criminalidade e imoralidade de ampliar o fosso da desigualdade.

Estrategicamente, só há uma saída para reduzir o peso da criminalidade sobre a sociedade brasileira: criar um projeto estrutural e de longo prazo para combater o crime organizado, que é capaz de afetar negativamente, e de forma ampla, o exercício da cidadania, a qualidade da democracia e o desenvolvimento econômico sustentável do país. Tudo isso acontece porque o Estado foi atingido em cheio por esse fenômeno.

Há duas formas de intromissão do crime organizado na atividade estatal: enfraquecendo as políticas públicas e gerando um relacionamento promíscuo com a política. Atuando nos dois campos, as facções criminosas reduzem a capacidade governamental de enfrentá-las. De um lado, amedrontando ou aliciando pessoas para servir ou comprar serviços de suas organizações e, de outro, corrompendo policiais e políticos para garantir salvo-conduto na prática diária de seus crimes.

Mais especificamente, o crime organizado afeta as políticas públicas de quatro modos. O primeiro é interferindo na provisão de serviços básicos à população, como fazem as milícias no Rio de Janeiro, prática que está se expandindo para várias partes do país. Em determinados territórios, o Estado e/ou concessionárias estão perdendo a batalha para as facções. Esses grupos mafiosos amedrontam a população para que ela seja obrigada a gastar boa parte de sua renda para pagar fornecedores ilegais de internet, água, gás, energia elétrica e tudo o que for possível de extorquir dos mais pobres. Cidadãos de áreas periféricas têm seus direitos vilipendiados sem que nenhuma força republicana consiga estancar essa enorme violência.

O segundo modo realiza-se pelo fortalecimento de atividades econômicas ilícitas para alavancar mais riqueza e, sobretudo, lavar dinheiro. O crime organizado é uma máquina de fazer negócios ilegais travestidos de legalidade. Mais uma vez as políticas públicas estão perdendo a batalha. Neste caso, estão sendo ineficazes para garantir e estimular o crescimento das empresas e do empreendedorismo sobre bases concorrenciais justas. O quanto o crime organizado está infiltrado do pequeno ao grande negócio no Brasil? Ninguém sabe o tamanho exato, mas quando facções dominam empresas de ônibus que ganham bilhões de subsídios da Prefeitura de São Paulo ou então se expandem em diversas atividades econômicas do mundo virtual, o sinal é assustador para o capitalismo brasileiro.

As políticas públicas têm um terceiro front de fragilidade frente ao crime organizado: a questão socioambiental. O Brasil tem nesse tema um dos seus ativos econômicos e geopolíticos mais importantes. Porém, atividades ilícitas extremamente violentas, como o tráfico de drogas, o garimpo ilegal e o desmatamento, são um empecilho gigantesco, se não o maior, a uma boa política ambiental. Mas não é só a natureza que sofre aqui. A população desses locais degradados por facções criminosas é refém de uma lógica equivocada de desenvolvimento, e enquanto o crime organizado dominar o pedaço, dificilmente haverá apoio a modelos mais sustentáveis.

O ciclo de impactos do crime organizado nas políticas públicas completa-se com um quarto elemento, o mais diretamente ligado a esse processo. As facções são o principal veículo da violência e insegurança que assolam o Brasil. Há crimes individualizados ou cometidos por pequenos grupos autônomos, mas isso é bem residual no conjunto do fenômeno. Obviamente que a organização cada vez mais efetiva dessas máfias, sua capacidade em adquirir armas e usá-las, a força que têm nas prisões, além dos negócios cada vez mais rentáveis, são aspectos que ampliam o seu poder.

Esse poderio, no entanto, só foi consolidado porque parcela das forças policiais foi conquistada pela corrupção. Assim, é cada vez mais difícil, em certos territórios, saber quem é polícia e quem é bandido, para lembrar da dicotomia básica que aprendi na rua quando cresci na periferia de São Paulo. Vale reforçar que policiais não só são comprados, como também estabelecem “tributos” para pagamento dos criminosos - o “arrego” no Rio de Janeiro e a “recolha” em São Paulo.

O impacto sobre as políticas públicas ampliou-se demais nos últimos anos por uma razão mais perversa: a entrada do crime organizado na política brasileira. Os recentes episódios envolvendo a morte de Marielle e as prisões de empresários e políticos envolvidos com o PCC mostram que essa temática poderá ter nos próximos anos o mesmo lugar central na agenda pública que teve a Operação Lava-Jato na década passada. Mesmo tendo cometido uma série de erros e ilegalidades, todas para favorecer politicamente agentes do sistema de Justiça, a Lava-Jato teve como maior legado a mudança na forma de financiamento eleitoral baseada nas trocas de dinheiro privado por benefícios públicos.

Há um novo cenário hoje: o crime organizado, junto com o golpismo de lideranças bolsonaristas, constitui um grande risco à democracia brasileira. No início, esse fenômeno se circunscrevia a algumas elites políticas locais e estaduais, especialmente no Rio de Janeiro, onde políticos apoiaram as milícias em nome da ordem - gente do bolsonarismo faz parte dessa história. A capacidade de se infiltrar na política cresceu vertiginosamente nos últimos anos, inclusive substituindo com dinheiro ilícito parte do financiamento privado que a classe política detinha no passado.

Vencer o crime organizado vai exigir um grande esforço nacional, um dos maiores de nossa história. Tal como ocorreu na maior frente ampla da política brasileira, que há 40 anos, completados nesta semana, organizou a campanha das Diretas Já para acabar com a ditadura militar. Líderes sociais, empresariais, religiosos e políticos vão ter de atuar conjuntamente e publicamente gritar contra o crime organizado. Para tanto, será necessário mudar estruturalmente a política de segurança pública, o que só será possível implementando efetivamente, e não com medidas fragmentadas e esporádicas, o Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP, um modelo que pode integrar o governo federal aos estados por meio de pactos institucionalizados e de longo prazo.

Como lembra Renato Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a profissionalização e a adoção de modelos de gestão consistentes, como em boa medida ocorreu no SUS, são fundamentais para que a cooperação federativa na segurança pública não seja mero discurso. Por essa linha, abandona-se o discurso demagógico que tem alimentado a discussão no Congresso Nacional. A saída para combater o crime organizado não é acabar com a “saidinha”, mas sim, um pacto amplo em torno de um SUSP efetivo. A pergunta incômoda é saber se a sociedade, policiais e políticos estão preparados para assumir essa bandeira. O medo maior é que parte do problema esteja no fato de que haja mais gente importante ligada às facções criminosas do que imaginaríamos nos nossos piores sonhos.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

Bookmark and Share

TROCANDO EM MIÚDOS: SEIS VEZES CHICO

Trocando em miúdos, biografia meticulosamente elaborada por Tom Cardoso, celebra os 80 anos de um ícone musical, político e literário: Chico Buarque, um dos maiores nomes da cultura brasileira.

Dono do eu lírico feminino mais aclamado do Brasil, contestador irredutível da ditadura civil-militar e vencedor do prêmio Jabuti por três vezes, Chico Buarque tornou-se um símbolo nacional, que diz: não é possível fazer cultura sem pensar a política.

Nascido em meio à efervescência cultural do Rio de Janeiro, o compositor e cantor emergiu como um polímata, cuja atuação transcendeu os limites da música para abraçar também o teatro, a literatura e o ativismo político. Filho do ilustre historiador Sérgio Buarque de Holanda e da intelectual Maria Amélia Buarque de Holanda, Chico encontrou na palavra o seu elemento basilar, dando vida a composições, livros e manifestações que ecoam os anseios e as contradições da alma brasileira.

A narrativa habilmente tecida por Tom Cardoso nos leva a explorar os meandros das experiências de Chico, desde os embates com a censura durante os anos sombrios da ditadura militar até os aspectos mais íntimos de seus processos criativos. Passamos por seis temas extremamente caros à vida pública e particular do cantor e compositor: a política, a literatura, a fama, as polêmicas, a censura (assim como a autocensura) e o futebol. O autor reúne depoimentos, entrevistas e uma extensa pesquisa bibliográfica para apresentar ao leitor o retrato múltiplo de um dos maiores artistas vivos da cultura popular brasileira.  

Na orelha deste livro, Maria Ribeiro assim caracteriza o trabalho narrativo de Tom Cardoso: “Eu amo as biografias do Tom. Por causa dele, me apaixonei pelo Tarso de Castro, virei torcedora retroativa do Sócrates, e coloquei a capa da Nara ao lado da foto do meu pai. Isso sem falar no Caetano, que tenho a sorte de amar em vida. Os brasileiros do Tom são uma espécie de bandeira ideal – e um jeito espertíssimo de conhecer nossa história.”

Via Amazon

Bookmark and Share

AGENTES ESTRANGEIROS INFILTRADOS NA DEMOCRACIA BRASILEIRA

José de Souza Martins*, Valor Econômico

A ação antidemocrática nos indica um consistente ativismo para desmobilizar a vigilância crítica dos que se recusam a ser tratados como tolos e politicamente imaturos

Não passa um dia sem que a agitação extremista antidemocrática deixe de comparecer à pauta da nossa paciência, como entrelinha invasora das informações e debates sobre os acontecimentos significativos da vida cotidiana das pessoas comuns. Os resíduos do golpe de Estado de 1964 ainda conspiram contra a democracia e os direitos sociais. Indicam-no evidências, como as de 8 de janeiro de 2023, de tratamento do povo brasileiro como um povo carneiril.

De tanto repetir-se, a agitação subversiva contra as instituições se naturaliza pela teimosia de sua reiteração. A sociedade brasileira vai ficando sem alternativas para situar o que de fato é relevante e o que é irrelevante na vida do país. Sobretudo o que é intencionalmente produzido para deturpar e minimizar o nosso penoso retorno à ordem.

Os mais desprovidos de discernimento e mais vulneráveis à manipulação ideológica e autoritária vão sendo induzidos a aceitar a banalização de nossa identidade de povo que a duras penas se formou numa história social de adversidades e desafios.

A ação antidemocrática basicamente nos indica um consistente ativismo para desmobilizar a vigilância crítica dos partidários da democracia e dos que se recusam a ser tratados como tolos e politicamente imaturos.

Agitadores e suspeitos de autoria e promoção da baderna, no entanto, têm sido contidos pela vitalidade das instituições e do protagonismo cívico dos defensores da Constituição e das leis. Os cansativos atores do circo da ilegalidade querem convencer os expectadores, no entanto, de que são vítimas de uma ditadura de esquerda.

A temida democracia que, ao enquadrá-los na lei, estaria se opondo ao anarcoliberalismo e à liberdade de alguns de tramarem contra o direito de todos. Associaram-se a agitadores internacionais que defendem como legitimamente democrática a difusão de valores negativos e princípios reacionários, antissociais e nazistas, caso da proclamação do direito ao ódio.

Estão em peregrinação por diferentes cantos do mundo para denunciar o governo brasileiro como uma ditadura de esquerda que lhes tolhe o direito de expressar, defender e praticar sua opção supostamente conservadora pelo ódio, pela tirania, pelo autoritarismo e pela morte, como se viu no modo criminoso e irresponsável de lidar com a pandemia.

Na verdade, nem os bolsonaristas, nem os seus simpatizantes e cúmplices, civis, religiosos e militares, são conservadores. Eles não têm o menor conhecimento do que é isso. São reacionários de forte inclinação fascista, despistados, vítimas não das instituições, mas de si mesmos e dos seus mentores e manipuladores.

O Brasil já conheceu, no Império, a grande tradição conservadora, no equilibrado balanço de gestão política alternativa do país pelos conservadores e liberais. Os liberais propondo inovações políticas e sociais e os conservadores realizando-as no marco do consenso negociado, como observou Euclides da Cunha na aguda compreensão que desenvolveu a respeito da realidade brasileira.

Entre nós esse balanço se expressou na ação política e econômica de grandes figuras como a de Antonio da Silva Prado, de família de grandes empresários originada no século XVIII. Ele foi o grande arquiteto da abolição da escravatura, cujo humanismo convergia com o de Joaquim Nabuco, quem melhor viu a extensão dos danos antissociais da escravidão relacionados com seus danos econômicos. Os fundamentos do atraso brasileiro, que residualmente persistem em anomalias como a onda autoritária do presente e o anticapitalismo da direita.

Um dos episódios desse delírio foi o da manifestação de bilionário sul-africano, empresário, dono de conhecida rede social, que, contrariado na sua insólita economia da manipulação das necessidades ideológicas dos toscos e irresponsáveis, prometeu desobedecer as ações e normas emanadas do TSE e do ministro Alexandre de Moraes. Com o reforço do presidente argentino, que, na falta de problemas em seu país, dispôs-se a colaborar com o empresário sul-africano no “conflito” com o STF.

O embaralhamento de temas irrelevantes com temas fundamentais da cidadania tem permitido aqui sobrerrepresentação de agitadores no Congresso. Base política de ações contra a ordem convencionada na Constituição de 1988. Como a dos que foram, sem êxito, à Câmara dos Deputados dos EUA pleitear medidas contra o Brasil por ser o nosso país suposta ditadura de esquerda. À custa do dinheiro público, esses grupos estão na Europa pleiteando o seu reconhecimento como vítimas dessa ditadura.

Atuam como agentes estrangeiros infiltrados na democracia brasileira, para defender um liberalismo superficial e interesseiro, contrário ao nosso direito de povo livre e soberano.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

Bookmark and Share

quinta-feira, 18 de abril de 2024

PREFEITA DE SC JOGA LIVROS NO LIXO

Catarina Scortecci, Folha de S.Paulo

Prefeita de SC joga livros no lixo e cita 'valores da família'

Filiada a partido de Bolsonaro, Juliana Maciel atacou PT e afirmou que obras são 'uma porcaria'

CURITIBA A prefeita de Canoinhas (SC), Juliana Maciel (PL), divulgou um vídeo em uma rede social nesta quarta-feira (17) em que aparece jogando livros no lixo. Segundo ela, as obras estão vinculadas a um programa do governo federal e não seriam adequadas para crianças e adolescentes.

"Eu jamais jogaria um livro no lixo, mas porcaria, numa biblioteca aqui do nosso município, não vai ter mais não", diz ela, que se elegeu pelo PSDB e, no final do ano passado, se filiou ao PL do ex-presidente Jair Bolsonaro.

No vídeo, Maciel afirma ainda que o governo do PT "induz a coisa que não é dos valores que a gente acredita" e cita "valores da família".

"Mais uma vez o governo do PT faz este tipo de coisa. Não é o que realmente uma criança ou até um adolescente precisa ler numa biblioteca. Então, aqui em Canoinhas, a gente jogou esse tipo de porcaria no lixo", afirma ela.

Ao final, Maciel ainda propõe que outros prefeitos façam uma varredura nas bibliotecas municipais. "Façam um pente fino nesses livros para ver se vocês também não estão sendo enganados mais uma vez por essa política do que a gente não acredita, que não prega valores para nossas crianças e nossos adolescentes", sugere ela.

A prefeita não fala quais livros está jogando fora nem detalha o conteúdo deles. A reportagem não conseguiu contato com a prefeitura, nesta quinta-feira (18). Procurado, o governo federal também não respondeu.

No mês passado, o livro "O Avesso da Pele", do escritor Jeferson Tenório, foi alvo de ataques. Uma diretora de uma escola em Santa Cruz do Sul (RS) pediu pela censura do livro, alegando que a obra era inadequada aos estudantes do ensino médio.

Em seguida, o governo do Paraná mandou recolher o livro das escolas estaduais do ensino médio no estado. Recentemente, a secretaria de Educação paranaense determinou que a obra fosse destinada apenas às escolas com EJA (Educação de Jovens e Adultos), voltada a estudantes com mais de 18 anos.

Bookmark and Share

SÃO TANTAS HISTÓRIAS

Hoje, 18 de abril,  dia que se comemora o Dia do Livro Infantil, (a data é uma homenagem ao aniversário do escritor, Monteiro Lobato), fez-me lembrar de uma história da escritora cearense, Rachel de Queiroz, relatada em sua autobiografia Tantos Anos, escrita por Rachel e sua irmã caçula, Maria Luiza de Queiroz, em 1998.

Rachel de Queiroz, a pioneira cearense – primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras, 1977 – conhecida pelas belas histórias contadas em suas obras, o carinho que tinha pelas palavras, seja nas crônicas, nas peças de teatro ou nos romances, ela era uma mulher à frente do seu tempo. Até na politica Rachel de Queiroz enveredou e teve uma vida intensa.
A consagrada carreira de escritora e jornalista, parte dos brasileiros já conhece, mas, na política é desconhecida pela maioria da população brasileira. Rachel se tornou membro do Partido Comunista ao lado de amigos de sua geração, uma turma politizada e ‘comunizada”, como relatou ela na autobiografia Tantos Anos, de 1998. Foi presa duas vezes.
Em 1931, após passar dois meses no Rio de Janeiro – tinha ido receber o Prêmio Graça Aranha, dado a O Quinze – Rachel volta ao Ceará, com credenciais do Partido Comunista, já politizada e com a missão de promover e reorganizar o Bloco Operário e Camponês, movimento político o qual ela tinha participado.
Rachel passou a fazer parte do Partido Comunista, mesmo sem ter feito uma ficha, assinado alguma ata. Aliás, não se podia deixar nenhum rastro de papéis, livros ou qualquer tipo de documento, a polícia era brutal e se pegasse algum vestígio, levava todos para a cadeia: às pessoas e os papéis. Com a chegada de Getúlio Vargas ao Rio, a polícia ficou mais feroz.
Em 1937, com a decretação do Estado Novo de Getúlio Vargas, os livros de Rachel de Queiroz foram proibidos e, num fato marcante, várias de suas obras acabaram queimadas em praça pública em Salvador (BA), junto a livros de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, todos classificados de subversivos.
O desligamento do Partido Comunista aconteceu após ela ver censurado pelo próprio Partido o romance João Miguel. No romance João Miguel, ‘campesino’ bêbado, matava outro ‘campesino’. O aviso: só permitiria a publicação da obra, se Rachel fizesse as modificações apontadas pelo presidente do Partido Comunista. Segundo o Partido, a trama era carregada de preconceitos contra a classe operária.
Jamais se curvou as imposições feitas a sua obra, Rachel de Queiroz não aceitou as tais modificações exigidas pelo Partido Comunista, pegou o original que tinha datilografado e saiu em disparada, como relatado por ela no capítulo O Rompimento, da autobiografia Tantos Anos.
Em sua obra Caminho de Pedras (1937), Rachel trata desse momento político que viveu no Partido Comunista, porque fazer política na década de 20, ser comunista era muito perigoso. A ideia de comunismo era distorcida e alguém que ousasse se apresentar como comunista pagaria um preço alto, até com a própria vida.
Rachel de Queiroz faleceu dormindo em sua rede, em sua casa no Rio de Janeiro, em 4 de novembro de 2003.
Bookmark and Share